Quando era criança eu tive várias ondas. Gostar muito de um personagem, de um universo, querer ser aquilo. Minha primeira onda foi Jack Chan, por volta dos nove anos. Ele lutando com uns dez caras e usando todo o cenário da forma mais inusitada, pendurado, jogando estantes, até o casaco dele servia como um tipo de corrente contra os inimigos. Aí veio o desenho no Cartoon Network, meu pai gravava os episódios em FITA VHS pra eu assistir assim que chegasse em casa. A fase Jack Chan durou muito, tenho até hoje os desenhos que eu fazia dele, coloridos inclusive. Eu gostava muito de desenhar mas odiava colorir, colorir era coisa séria! A medida que fui adolescendo, assisti todos os filmes do James Bond. Era a mesma pegada macho cis do Jackie mas com acréscimo da tecnologia militar e uma pitada de supremacismo branco.
Eu brincava que era o Jack Chan e meu amigo Kaian (que poderia muito bem ser um nome de personagem por si só) era o detetive Carter, uma alusão a Hora do Rush. As vezes nós dois éramos James Bond. A gente brincava dentro desses filmes, tinha a mesma escalação de atores, carros com lança mísseis, nossa engenharia bélica de armas de plástico e travesseiros. A gente se desentendia quando o Kaian começava a invocar naves, laser, aliens. Ele curte Star Wars desde sempre, coisa que não suporto até hoje. Aquele monte de planeta, uns bicho sem gramática nenhuma, cada um parece que veio de um filme diferente. Sempre achei Star Wars feio, não digo que é ruim, só nunca me pegou. Mais tarde, quando saíram os filmes do Senhor dos Anéis eu gostei muito, não a ponto de virar um nerd élfico, mas cheguei a ler o terceiro livro ansioso pelo último filme.
Pra além de Senhor dos Anéis, 007 e Jack Chan, eu tive uma onda, uma obsessão talvez, um universo que durou mais que todos os outros: Hogwarts. Nunca fui fã de Batman, Superman e nenhum outro cosplay de soldado americano. Também não era do Dragon Ball, nem tanto do Pokémon. Harry Potter sempre foi a minha coisa. Meus pais tinham lido todos os livros lançados, alguns deles até duas vezes. Eles que me levaram pro cinema, tudo que eu sabia estava nas capas dos livros, eram só quatro ainda, eu não lia nenhum deles. Ler era chato, folhas cheias de texto sem imagens dava preguiça. Faço parte dos milhões de brasileiros que aprenderam a ler com Turma da Mônica, a primeira escola de quadrinhos que tive. Eu me reunia com as minhas primas, elas assinavam a Maurício de Sousa e todo mês chegavam vários gibis: Cebolinha, Cascão, Magali, a MÔNICA EDIÇÃO 200, com a Mônica na capa pilotando uma Maria Fumaça. A gente devorava os gibis, ríamos alto cada um com o seu e depois a gente trocava. Nenhuma sensação hoje se compara aos dias que chegavam os novos gibis.
Harry Potter pra mim faz parte da mesma jornada Paulo Freire que começou com gibis, foi o primeiro LIVRO GRANDE que li. A sensação de ler a última página, fechar o livro, olhar a espessura: meu deus eu li tudo isso, sou muito inteligente, capaz de grandes feitos! Eu tava na casa da minha madrinha em Jundiaí, minha mãe me olhando: “é gostosa a sensação de terminar um livro, né?”. Talvez por ter perguntado ela tenha eternizado aquele sentimento. Seguindo o caminho dos meus pais, li todos os livros da saga. O Kaian soltou minha mão nessa fase, ele realmente não gostava do mundo dos bruxos, não era a pira dele. Por outro lado, a minha prima Camila, a mesma do parágrafo anterior, viciou junto comigo. Ela tinha uma pasta, essas com saco plástico a3, onde ela colecionava todo tipo de impresso sobre a saga: pedaço das edições especiais da Capricho, folders diversos, matérias de jornal, tudo que tivesse o Harry (ou só o Daniel Radcliffe) já bastava. Minha prima inaugurava ali o primeiro Pinterest do mundo. Folhear a pasta era lindo, pertencer aquilo, ter lido todos os livros, ver a escalação dos próximos atores para os personagens que a gente já conhecia porque líamos os livros antes. Começamos a ler o sexto livro em INGLÊS porque ainda não tinha saído em português. Ela me falou: “vou ler essa versão original mesmo quando lançar no Brasil”. Não durou muito, nosso inglês era ruim, hoje o meu é pior, ela é super fluente.
O foda daquela inglesada, que destoava das minhas ondas anteriores, era que de certa maneira era ATUAL. Hogwarts estava viva junto comigo, não se passava numa época distante ou numa galáxia muito distante. Eles vão pra escola, tem colegas de sala, tem que estudar. Os LOOKS são atuais, os cachecóis vermelho e amarelo. Eu lembro que por um tempo meu DRESS CODE, agora já não mais adolescente, estamos já falando da faculdade, era o conceito: como me vestiria se estivesse em Hogwarts. Uma coisa meio humanas, bruxo, tilelê, grifinória. Por Deus, comprar um óculos redondo foi Harry Potter na minha vida. O menino moleque Harry, o adulto Harry. São universos que entram no nosso imaginário desde criança e não vão embora. Compõe a nossa ideia do que é ser bonito, o que é ser legal, quem queremos ser. Eu nunca quis ser o menino exatamente, mas acho que eu queria ser Dumbledore, um professor de universidade, sabe tudo sobre Design, semiótica, as bruxarias de Vilém Flusser, a magia antiga de Merleau-Ponty, combatendo o facismo de Voldemort com os poderes da ARTE!
O fim da magia foi quando a autora da saga decidiu desabrochar como uma extremista transfóbica, ou radfem, uns anos atrás. Não estou falando de alguém que simplesmente ERRA os pronomes de pessoas trans ou que acreditou na fake news do kit gay. Estou falando de uma gringa BILIONÁRIA que apoia politica e financeiramente organizações anti-trans. Uma delas já traz o negacionismo no nome: LGB, um movimento com todas as cores do arco-íris, com exceção da letra T.
Como pode alguém que inventou a escola de magia e bruxaria de Hogwarts, que conceituou a maldade de Voldermort baseada na discriminação de não-bruxos, ou os mestiços, como Hermione, filha de pais não-bruxos (uma "sangue-sujo”), ser a mesma pessoa que se posiciona contra a minoria mais perseguida de sua época? Assim como Magneto dos X-Men, a perversidade do vilão é exterminar todos os trouxas e fazer reinar seu próprio entendimento de raça ariana. A mesma autora que cria um universo enriquecido de história, com uma disputa do bem VS mal bem contextualizada, é a mesma que escreve tuítes de dar inveja no facista mais escatológico.
Recentemente a Luisa Lacombe e o Érico Assis escreveram sobre os episódios de abuso sexual envolvendo o escritor igualmente renomado e igualmente britânico. O que fazer com as obras quase santificadas por nós, fãs, ao descobrirmos que os respectivos autores bilionários tem um caráter que não vale o royalty nem de uma vírgula escrita? É possível dizer que a escritora não entendeu a própria saga? Ou fui eu que não entendi e sempre foi ruim esse tempo todo?
Não é minha intenção aqui esboçar uma conduta individual como mais apropriada pra esses casos. Defender boicote na era das ruínas neoliberais na qual o único autor que vai sobrar é o ChatGPTó, também me interessa pouco. Mas no meu caso, a forma que eu lidei, foi destruindo uma horcrux de cada vez. Não queria nada habitando meu imaginário, meu repertório precioso, que tivesse sido escrito por aquela morcega velha. Por sorte, eu nunca conheci direito a obra do autor de Sandman. Felizmente o único que eu li foi Books of Magic, que sinceramente não me pegou. Ainda assim, não me salvei de desenhar no meu primeiro quadrinho em 2017 o famoso discurso dele pra uma formatura de artes. Minha certeza agora é que nunca mais vou ler Neil Gailman, a coisa me pega pelo estômago, não consigo evitar. Da mesma forma, não consigo ver qualquer referência a Potter sem me apertar a garganta. É a forma como lido com as coisas. Podem até ser livros bons, não discuto isso, mas no tempo que me resta na terra prefiro me dedicar a outras obras melhores. Nessa vida não vai dar tempo de ler tudo mesmo.
Foi mais ou menos assim quando troquei de dentista, no dia que tive certeza que ela era uma bolsonarista. Eu tava com a boca lotada de algodão, não podia nem responder, e ela me solta um “nossa você viu a vacina é uma conspiração da China”. O que me fez pensar: quantos profissionais mais qualificados e mais bem intencionados do que aquela senhora mereciam o meu dinheiro? Trabalhar na área da saúde falando mal de vacina, me desculpe, em algum momento isso vai acertar meus dentes, eu não confio mais.
O trabalhador artista é visto antes como artista, como uma figura que de alguma forma está acima das outras profissões, do que um trabalhador como qualquer outro, como um dentista, torneiro mecânico, catador. Ele é lido muitas vezes com exaltação não só pelo seu trabalho, mas é feito um julgamento inevitável do seu caráter a partir daquilo que escreveu ou desenhou. Quanto mais sucesso, mais ele é descolado da realidade de seu tempo, alguém que tem um dom, idolatrado pelo público, um GÊNIO. Eu sou cada vez mais descrente dessa imagem do artista. Prefiro antes me colocar como um trabalhador, alguém que dedica tempo a uma atividade, é um alívio muito grande me entender assim. Eu to cercado de contexto, contexto de escassez, como quase todo quadrinista no país, não tenho dom de nada, sou bem ignorante, mas tento ser cada vez melhor no meu ofício: trabalhar a linguagem com todos os seus recursos pra passar uma mensagem pela superfície do papel. Quem trabalha com isso sabe: tem algo de SUPERFICIAL nisso tudo. A habilidade de trabalhar esse espaço superficial (SHALLOW SPACES) do papel, essa camada fina que conecta a história e o leitor. É um jogo, uma ilusão, ou uma alquimia, como disse Lourenço Mutarelli no curso do SESC. É possível você inventar uma Hermione Granger e ao mesmo tempo ter uma noção xucra, limitada, perversa, anti-científica sobre gênero e sexualidade, duas das pautas mais importantes do nosso tempo.
Acho que dessa maneira talvez dê pra discutir a separação do artista e obra: um trabalhador habilidoso criador de obras magníficas, mas que nada tem a ver com ser um humano modelo ou figura exemplar, um reflexo de quem queremos ser. Durante meu intercâmbio na Royal Academy da Holanda eu convivi com diversos artistas, futuros “gênios” das galerias da Europa. Pessoal que fazia pintura, escultura, performance, instalação e chute no teto. O meu desencanto pela figura do artista começou lá. Uma galera bem perdida e alheia das questões do mundo, mas que no fim do dia entregavam algum trabalho de arte. O sucesso deles com certeza vai se dar pelo contexto e pelos privilégios que nasceram com eles: ser um europeu estudante de Arte no país que mais valoriza a Arte e Design. Primeiramente, se não fosse o contexto, essas pessoas teriam que arrumar outros trabalhos, talvez nunca fariam uma obra e muito menos teriam contato com um crítico, professor ou curador.
Gosto muito daquela frase do Gilbeto Gil dizendo que cultura é arroz com feijão, “precisa acabar com essa história de achar que cultura é uma coisa extraordinária”. Saber desenhar, saber fazer música, é como aprender a ler e escrever, todo ser humano é capaz de praticar linguagem, não precisa ser um escolhido ou abençoado. Mas num campo cada vez mais precarizado, quantos conseguem se manter? Quantos conseguem alcançar uma produção de fôlego tipo uma saga pra no fim serem aceitos como “gênios”? E quantos desses gênios, mesmo tendo cometido crimes, conseguem se safar e permanecer admirados e ricos? Qual jogo essas pessoas jogam? São verdadeiramente gênios ou apenas ocupam um Olimpo que pouquíssimos conseguem chegar vivos (alguns chegam depois de mortos)? O artista fica num lugar inalcançável, uma meritocracia esteticamente agradável, o supra sumo da produção humana. Nesse raciocínio, ser um gênio me parece por definição compor uma casta restrita.
Os desenhos que mostro aqui são o oposto de fanart, são como um exorcismo. Está finalmente e devidamente enterrado todo mínimo sentimento bom pela saga, pelos livros, filmes, obras, games, pela escritora, autora, pela pessoa, pelo monstro J.K. Rowling. Ela agora finalmente ocupa o lugar de nojo que reservo aos inimigos mais perigosos. Enquanto escrevo este parágrafo, a corte britânica acaba de definir que uma mulher só pode ser nascida “biologicamente”, seja lá o que isso signifique, o importante é garantir a discriminação. Ter estômago para continuar consumindo essas obras, fingindo que a autora não existe, que o dinheiro não existe, é bem possível, basta sentir quase nenhuma empatia por pessoas trans. Ou no caso do Neil Gailman, por mulheres no geral, trans ou cis. Se você não tem nenhuma dessas pessoas no seu círculo social então, é mais fácil ainda.
O esforço vai na direção de imaginar uma sociedade com mais artistas, justamente remunerados, que não precisem ser “geniais” para ter valor. Talvez assim, entre essa classe, aqueles de destaque, os mais admirados e mais milionários, seriam pessoas com um caráter um pouco melhor. E com certeza, imaginar um mundo sem artista bilionário, não é justo existir bilionários, em qualquer profissão.
Ano passado meu óculos redondo foi salvo pela rainha ALICE CARVALHO, ou DINORAH VAQUEIRO, que postou no instagram uma publi da Ray-Ban usando exatamente o meu modelo. Era a imagem que eu precisava, motivo suficiente pra descolonizar minha miopia, ressignificar a referência, e continuar usando óculos redondo livre de qualquer maldição.
Harry Potter é um buraco aberto no meu peito. Fui pouco a pouco me desfazendo dos objetos que tinha relacionados à saga – algo duplamente difícil, já que parte deles eram presentes do meu marido e da minha irmã. Hoje só me resta um Funko Pop do Dobby (também presente da minha irmã), com uma meia na mão, que eu faço questão de deixar sempre do lado do meu Funko Pop da Sharon Needles (uma drag queen de Ru Paul's Drag Race. Não é uma mulher trans, mas TERFs geralmente criticam muito a arte drag dizendo que as drags retratam mulheres de forma pejorativa).
que texto BOM! Arrancou de mim tantas risadas (com as ilustrações), reflexão sobre a nossa realidade e o funcionamento social da arte no mundo, expandiu o famoso "o que o c* tem a ver com as calças"... sério, maravilhoso pra caramba